Uma vez, no mês de dezembro do ano de 1996, uma professora me pediu para escrever uma mensagem para ser lida na confraternização de natal dos funcionários, pais e alunos do colégio Objetivo de Boa Vista, onde eu era diretor administrativo. Queria que eu falasse sobre o Papai Noel. Alertei-a de que eu não era a pessoa mais indicada para aquela tarefa. Contei-lhe da minha experiência frustrante com o velhinho na minha infância.
Tinha dez anos, quando pela primeira ouvi falar no Papai Noel. Apresentaram-me como sendo um velhinho bom, de barbas brancas, que carregava nas costas um saco de presentes para as crianças de todas as idades do mundo todo. Mas isso não podia ser verdade. Fiquei desconfiado. Como, aos onze anos de idade, naquele dia 24 de dezembro de 1959, nunca tinha ouvido falar nesse bom velhinho? Por que ele nunca havia aparecido lá pelo Centro dos Protestantes, no Maranhão, onde até seis meses atrás eu morava? Ali, como muitos da minha idade, não passava de um moleque sambudo que perdera a mãe com apenas quatro anos e que vivia com um bando de irmãos na casa do avô paterno. O papai de verdade andava por aí, não se sabe por onde. Durante o ano ele raramente aparecia. Bem que esse tal Papai Noel poderia ter aparecido por lá nas ausências do Papai de verdade.
Já em Boa Vista – trazido do Maranhão por duas tias com as quais passei a morar – não gostei de saber desse Papai Noel “bonzinho” que, como meu pai verdadeiro, só visitava as crianças uma vez por ano com algum presentinho. Eu não queria presentes. Eu queria um pai presente. Na minha cabeça de menino de onze anos esse tal Papai Noel não me incitava emoção nenhuma. Pelo contrário, tinha medo que me trouxesse mais contrariedade do que felicidade. E trouxe. Em primeiro lugar, disseram-me que tinha de dormir cedo na noite de natal. Ele não entregava o presente diretamente nas mãos das crianças. Era preciso estar dormindo porque ele passava meia-noite. Se a criança estivesse acordada, ele não deixava o presente debaixo da rede. Imaginem dormir com tanta ansiedade! Outra coisa me deixava embatucado: por que esse tal Papai Noel não passava cedo em casa e entregava os brinquedos diretamente para a criançada? Pra que tanto mistério? Mais uma: por que havia um tipo de Papai Noel que aparecia no campo de futebol João Mineiro ou na frente da casa do governador, na Jaime Brasil? Pude entender isso algum tempo depois. Mas de um detalhe não esqueço: tanto o primeiro presente que deixou debaixo da minha rede como os demais que ganhei no João Mineiro e na Jaime Brasil, nos anos seguintes, não passavam de presentinhos fajutos. O primeiro, um minúsculo carrinho de plástico que ao primeiro tranco, as rodinhas voaram pra bem longe. O segundo, uma luneta da cor de alumínio que não aproximava um centímetro sequer os objetos focados. As bolas de borrachas, que passei a receber nos natais seguintes, furavam ao primeiro toque no arame farpado das cercas que protegiam os quintais da época. Uma lástima! Papai Noel sem-vergonha...
Bem, falei com minha amiga professora sobre essa pendenga que tinha com o velhinho da Lapônia imaginando que ela haveria de convidar outra pessoa para atender seu pedido. Que nada! Ela insistiu achando que aquela era uma boa oportunidade pra muita gente ouvir outro ponto de vista sobre o natal e o seu herói de barbas brancas.
Sem saída, topei o desafio. Escreveria um texto curto, pensei. Mas um texto que pudesse atingir o cerne da questão. Ou seja, com uma proposta que pudesse desmascarar o velhinho impostor que se instalara no imaginário das crianças como sendo o principal personagem do natal. Diria isso em vinte e cinco linhas, para lembrar que o dia 25 de dezembro é o dia de um menino muito jóia: o menino Jesus. Não desse tal “bom” velhinho de história fantasiosa e obscura.
Aceitei o convite a contragosto. Escrevi de afogadilho. O texto saiu chinfrim. Porém, pela reação da maioria dos ouvintes o objetivo parece ter sido alcançado. O escrito causou bastante desconforto e pelo zunzunzum abrira um importante flanco de discussão sobre o assunto. Era o que a professora queria. Eu... Nem tanto.
Comecei o texto falando em rápidas palavras da fantasiosa e obscura história do Papai Noel, um pagão metamorfoseado e cristianizado – como foram muitas outras crenças e costumes – pela criatividade dos pais da igreja cristã primitiva. Que ninguém se engane, o bárbaro Papai Noel reformulado pela tradição cristã nunca deixou de ser pagão. Vejamos:
Affonso Romano de Sant’Anna, em seu livro de crônicas “Tempo de delicadeza”, põe luz sobre a origem do velhinho de barbas brancas. Diz ele que há duas origens do mito do Papai Noel. A mais comum está ligada a São Nicolau um santo que salvou marinheiros nas tempestades, libertou moças do cativeiro e ressuscitou crianças. Sua fama de bom velhinho vem daí.
A outra lenda – a mais provável – sobre sua origem antecede o cristianismo. Nessa história o Papai Noel não tem nada de bonzinho. Diz Affonso: o mito do velhinho que em pleno inverno europeu trazia às costas um saco cheio de presentes para distribuir às crianças, é, na verdade, a maneira como o imaginário cristão reformulou o mito arcaico que era exatamente o inverso do Papai Noel como hoje é conhecido. O personagem se chamava Nicolas. Estava sempre à frente de um bando de mascarados e por onde passava estalava seu chicote que fazia soar os sinos dependurados em seus trajes. O velho Nicolas e seu bando assaltavam os povoados e obrigavam seus habitantes a celebrarem com eles seus festins licenciosos. Por onde passavam sequestravam crianças e as punham dentro dos sacos que traziam. Essas incursões do bando liderado pelo velho Nicolas (Papai Noel) aconteciam exatamente no solstício do inverno europeu, vinte e cinco de dezembro, dia que a igreja, tempos depois, escolheu para fixar a data do nascimento de Jesus.
Há no inconsciente coletivo dos povos nórdicos, como também no dos franceses, belgas e alemães, a lembrança dessa horda de bandidos montados nos seus robustos cavalos. Affonso Romano anota que no folclore da região de Lorraine existe a figura do Pai com chicote, cuja ambiguidade remete tanto para o bárbaro que vinha chicoteando seus cavalos quanto ao Papai Noel que viaja docemente “chicoteando” suas renas. Romano informa ainda, que, coincidentemente, na biografia do São Nicolau, o chicote também aparece, mas de forma invertida. Na versão cristianizada o velho Nicolas que chicoteava passa a são Nicolau martirizado com um chicote. Na Alemanha, o “Klaubauf” é retratado na figura de um velho que carrega um saco para recolher crianças, remetendo ambiguamente para a mesma lenda. Na mesma linha, na Inglaterra esse vestígio da imagem arcaica e pré-cristã de Nicolau aparece no nome do capeta conhecido como “velho Nick”.
Finalizei aquele texto firmando alguns pensamentos que até a mim pareceram muito fortes. Andei perto de me arrepender. Mas, finquei pé:
· Papai Noel sempre foi um impostor.
· Tomou sem nenhuma cerimônia o lugar do menino Deus.
· Com aquele jeitão aparentemente bonachão ele pensa que engana a todas as crianças. A mim, por exemplo, só enganou uma vez.
· O natal tem a ver com o menino Jesus, enquanto Papai Noel com a ganância comercial.
· No natal do Papai Noel ele pratica extorsão contra os pais das crianças, compra tudo que lhe vem à cabeça, põe tudo no saco que carrega às costas e sai distribuindo o que não é seu.
· Papai Noel não é um sujeito razoável. Ele é tão irracional quanto às renas que o conduzem.
· Papai Noel é discriminador. Dá os melhores e mais caros presentes para quem menos precisa. Para os mais necessitados ele dá reles presentinhos ou, quando muito, as invariáveis cestas básicas que matam a fome das crianças pobres somente no dia do natal.
· Um dia após o natal a barriga das crianças volta a roncar de fome. O “bom” velhinho já está longe... Lá para as bandas da Lapônia. Alguém sabe onde fica a Lapônia?
· O tal Papai Noel não está nem aí para as crianças pobres da África ou dos guetos e becos das cidades grandes. Que morram! Ele só volta agora no ano que vem. Se voltar. Ultimamente ele anda de saco cheio com os pedidos cada vez mais exigentes das crianças pobres. Elas, também, querem tênis de marca, roupas de grife, celulares smartfones (Iphone, blackberry,galax S II), tablets, etc.
Como havia previsto, a maioria dos participantes daquela festa de natal saiu frustrada. Com o ímpeto de um iconoclasta havia jogado por terra uma das mais caras crendices (ou cretinices?) dos adultos. Uma violência despropositada – disseram alguns – contra o espírito do natal que animava aquela festa. Tem nada não, o objetivo foi alcançado. Neurônios foram despertados e vibraram vigorosamente. Alguns contra. Outros a favor. Tudo bem, a mim, já que a professora insistira, importava dar um choque naquela gente hipócrita que fazia as crianças acreditarem que o Papai Noel fora sempre esse vovozinho tão bonzinho! Gente que nunca havia pensado nos milhões de crianças que – como eu até aos 10 anos – no natal jamais receberam a visita do Papai Noel.
Naturalmente que, naquele natal de 1996, a frustração do menino de onze anos que viera dos cafundós do Judas do Maranhão era coisa do passado. Homem feito sabia muito bem quem era o tal velhinho. Papai Noel e eu nunca resolvemos nossa quizila particular. De qualquer forma, a essa altura do campeonato e pela força das circunstâncias obrigamo-nos a mútua tolerância. A uma convivência quase amigável. Obra de minha filha mais velha que, quando com três anos, numa bela noite de natal, deixando-se envolver pela lábia do barrigudo velhinho, que desta feita não esperou a menina pegar no sono, recebeu dele uma linda boneca de última geração. Isso foi o fim da picada. O sagaz condutor de renas convenceu-a definitivamente de sua fama de bonzinho. Os três filhos seguintes seguiram a mesma trilha. Todos foram aliciados pelo tal Papai Noel. Perdi a batalha. Transformei-me em mais uma vítima do “doce chicote” desse velhinho maquiavélico. Ou velho Nick?