O historiador Marco Antonio Villa, em artigo incisivo publicado hoje (29) no jornal O Globo, traça um perfil sem maquiagem do presidente do Senado, José Sarney, e o desafia a testar sua imagem caminhando sozinho pelas ruas das principais cidades do Brasil. Leia o artigo:
A face do poder: um retrato de Sarney
MARCO ANTONIO VILLA*
José Ribamar Ferreira de Araújo Costa é a mais perfeita tradução do oligarca brasileiro. Começou jovem na política, conduzido pelo pai. Aos 35 anos resolveu mudar de nome. Tinha acabado de ser eleito governador do seu estado. Foi rebatizado por desejo próprio. Alterou tudo: até o sobrenome. Virou, da noite para o dia, José Sarnei Costa. O Costa logo foi esquecido e o Sarnei, já nos anos 80, ganhou um "y" no lugar do "i". Dava um ar de certa nobreza.
Na história republicana, não há personagem que se aproxime do seu perfil. Muitos tiveram poder. Pinheiro Machado, na I República, durante uma década, foi considerado o fazedor de presidentes. Contudo, tinha restrita influência na política do seu estado, o Rio Grande do Sul. E não teve na administração federal ministros da sua cota pessoal. Durante o populismo, as grandes lideranças lutavam para deter o Poder Executivo. Os mais conhecidos (Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Leonel Brizola, entre outros), mesmo quando eleitos para o Congresso Nacional, pouco se interessavam pela rotina legislativa. Assim como não exigiram ministérios, nem a nomeação de parentes e apaniguados.
Mas com José Ribamar Costa, hoje conhecido como José Sarney, tudo foi – e é – muito diferente. Usou o poder central para apresar o "seu" Maranhão. E o fez desde os anos 1960. Apoiou o golpe de 1964, mesmo tendo apoiado até a última hora o presidente deposto. Em 1965, foi eleito governador e, em 1970, escolhido senador. Durante o regime militar priorizou seus interesses paroquiais. Nunca se manifestou contra as graves violações aos direitos humanos, assim como sobre a implacável censura.
Foi um senador "do sim". Obediente, servil. Presidiu o PDS e lutou contra as diretas já. No dia seguinte à derrota da Emenda Dante de Oliveira – basta consultar os jornais da época – enviou um telegrama de felicitações ao deputado Paulo Maluf – que articulava sua candidatura à sucessão do general Figueiredo – saudando o fracasso do restabelecimento das eleições diretas para presidente. Meses depois, foi imposto pela Frente Liberal como o candidato a vice-presidente na chapa da Aliança Democrática. Tancredo Neves recebeu com desagrado a indicação. Lembrava que, em 1983, em fevereiro, quando se despediu do Senado para assumir o governo de Minas Gerais, no pronunciamento que fez naquela Casa, o único senador que o criticou foi justamente Ribamar Costa. Mas teve de engolir a imposição, pois sem os votos dos dissidentes não teria condições de vencer no Colégio Eleitoral.
Em abril de 1985, o destino pregou mais uma das suas peças: Tancredo morreu. A Presidência caiu no colo de Ribamar Costa. Foram cinco longos anos. Conduziu pessimamente a transição. Teve medo de enfrentar as mazelas do regime militar – também pudera: era parte daquele passado. Rompeu o acordo de permanecer 4 anos na Presidência. Coagiu – com a entrega de centenas de concessões de emissoras de rádio e televisão – os constituintes para obter mais um ano de mandato. Implantou três planos de estabilização: todos fracassados. Desorganizou a economia do país. Entregou o governo com uma inflação mensal (é mensal mesmo, leitor), em março de 1990, de 84%. Em 1989, a inflação anual foi de 1.782%. Isso mesmo: 1.782%!
A impopularidade do presidente tinha alcançado tal patamar que nenhum dos candidatos na eleição de 1989 – e foram 22 – quis ter o seu apoio. O esporte nacional era atacar Ribamar Costa. Temendo eventuais processos, buscou a imunidade parlamentar. Candidatou-se ao Senado. Mas tinha um problema: pelo Maranhão dificilmente seria eleito. Acabou escolhendo um estado recém-criado: o Amapá. Lá, eram 3 vagas em jogo – no Maranhão, era somente uma. Não tinha qualquer ligação com o novo estado. Era puro oportunismo. Rasgou a lei que determina que o representante estadual no Senado tenha residência no estado. Todo mundo sabe que ele mora em São Luís e não em Macapá. E dá para contar nos dedos de uma das mãos suas visitas ao estado que "representa". O endereço do registro da candidatura é fictício? É um caso de falsidade ideológica? Por que será que o TRE do Amapá não abre uma sindicância (um processo ou algo que o valha) sobre o "domicílio eleitoral" do senador?
Espertamente, desde 2002, estabeleceu estreita aliança com Lula. Nunca teve tanto poder. Passou a mandar mais do que na época que foi presidente. Chegou até a anular a eleição do seu adversário (Jackson Lago) para o governo do Maranhão. Indicou ministros, pressionou funcionários, fez o que quis. Recentemente, elegeu-se duas vezes para a presidência do Senado. Suas gestões foram marcadas por acusações de corrupção, filhotismo e empreguismo desenfreado. Ficaram famosos os atos secretos, repletos de imoralidade administrativa.
O mais fantástico é que em meio século de vida pública não é possível identificar uma realização, uma importante ação, nada, absolutamente nada. O seu grande "feito" foi ter transformado o Maranhão no estado mais pobre do país. Os indicadores sociais são péssimos. Os municípios lideram a lista dos piores IDHs do Brasil. Esta é a verdadeira face do poder de Ribamar Costa. Como em uma ópera-bufa, agora resolveu maquiar a sua imagem. Patrocinou, com dinheiro público, uma pesquisa para saber como anda seu prestígio político. Não, senador. Faça outra pesquisa, muito mais barata. Caminhe sozinho, sem os seus truculentos guarda-costas, por uma rua central do Rio de Janeiro, São Paulo ou Brasília. E verá como anda sua popularidade. Tem coragem?
(Publicado em 29.11.2011, em O Globo)