O Debate não entrou em contradições do projeto proposto por procuradores, desfigurado na Câmara.
“Não
existe mais dez medidas contra a corrupção. Elas morreram. O que
aconteceu pode ser interpretado como uma traição”, afirma Silvana
Batini, procuradora regional do Rio de Janeiro. A opinião resume bem a sensação que ficou no ar depois da votação na Câmara dos Deputados sobre o tema.
Na madrugada de quarta-feira,dia 1º de dezembro de 2016 depois de
aprovarem por 450 votos contra um o pacote de medidas que já tinha
passado por alterações na Comissão Especial da Câmara, os deputados
passaram a votar uma série de emendas que transformaram a proposta
inicial em um verdadeiro “frankenstein” – cheio de remendos e quase sem
semelhanças com o que havia sido proposto inicialmente. Agora, o texto
votado seguirá para votação no Senado.
Desde que as “dez medidas”, que na verdade sempre foram um conjunto de propostas bem mais extensa do o número anuncia, começaram a ser discutidas no âmbito da Câmara o clima foi de instabilidade. Não se sabia ao acerto o que a comissão que analisava a proposta iria sugerir e o que os deputados iam, de fato, votar. A possível anistia ao caixa 2,
por exemplo – que levou Michel Temer a se pronunciar em um domingo na
companhia dos chefes das casas legislativas, Rodrigo Maia (DEM), da
Câmara, e Renan Calheiros (PDMB), do Senado –, dominou o noticiário por
seguidas semanas. Desta forma, uma discussão mais profunda sobre a
natureza das propostas e como elas chegaram onde chegaram acabou ficando
completamente fora dos holofotes.
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Acontece
que apesar do respaldo de 2 milhões de assinaturas da sociedade civil e
de uma ampla campanha do Ministério Público Federal (MPF), no meio
jurídico as “dez medidas”, agora completamente desfiguradas, não
chegaram a ser consenso absoluto em nenhum momento. Para o coordenador
de defesa criminal da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Emanuel
Queiroz, o pacote foi proposto de forma açodada e sem a discussão
necessária desde o início. Ecoando a opinião de outros críticos, Queiroz
argumenta que todos são contra corrupção, por isso foi tão fácil
conseguir as assinaturas. Além disso, o pacote contou com ampla
publicidade do MPF, inclusive com site de divulgação e palestras de
figuras conhecidas na Operação Lava Jato, como o procurador Deltan Dallagnol.
Se
fosse possível resumir o debate em duas posições distintas, a mais
conhecida seria a do Ministério Público Federal. De forma geral, quem
defendia e participou do processo de elaboração do pacote procurava dar
respostas para o tema sensível da corrupção, fazendo com que processos
fossem agilizados e possibilidades de postergação de julgamentos por
parte dos acusados fossem minimizadas. Em suas palestras, Dallagnol
costuma citar o caso de Luiz Estevão, ex-senador e empresário arrolado
em esquemas de corrupção, que impetrou 85 recursos junto à Justiça para
se safar da prisão. Quem discordava, dizia que as “dez medidas” teriam
impacto não apenas em casos de corrupção, mas em todo o sistema penal.
Que recrudescimento de penalizações não era a resposta para um problema e
que, nas palavras de Queiroz, “o Código Penal não pode ser visto como
um elemento capaz de transformar a sociedade, ainda mais em um país com a
quarta maior população carcerária do mundo”.
“Quando
o Deltan veio me procurar para eu assinar o documento, eu disse que
concordava com alguns pontos e com outros não, acabei não assinando
pelas minhas discordâncias”, diz Thiago Bottino, professor de Direito da
Faculdade Getúlio Vargas, no Rio de Janeiro (FGV-RJ). Segundo ele, o
clima de gestão das propostas, em que houve pouco espaço para o
contraditório, acabou resultando no “frankenstein” aprovado pela Câmara.
Na mesma linha, Queiroz diz que quando foi à Comissão Especial da
Câmara tratar do assunto foi chamado de corrupto pelo simples fato de
discordar das propostas contidas.
Para Ivar Hartmann,
professor de Direito da FGV-RJ, empacotar as medidas em dez pontos faz
parte da estratégia que o MPF usou para ganhar visibilidade ao tema.
“Passava a ideia de que iria resolver o tema de forma eficaz e também
era uma forma de criar pressão ou um ambiente para que tudo fosse
aprovado sem muitas mudanças”, acredita Hartmann. Não foi o que
aconteceu. Para a procuradora Battini, que sempre se mostrou favorável
às “dez medidas”, era natural e esperado que o projeto sofresse
alterações na Câmara dos Deputados. “Isso faz parte do jogo
institucional, mas o que eles aprovaram foi um texto completamente
esvaziado com a clara intenção de ser uma retaliação à Operação Lava
Jato. Atacar o Judiciário e o MPF é muito grave. Em um contexto como
esse gera inseguranças para o Estado democrático”, diz Battini.
ABUSO DE AUTORIDADE
Dentre
os pontos mais conflituosos do que foi aprovado pela Câmara estão os
“crimes de abuso de autoridade”, algo extremamente genérico que, se
aprovado, será um instrumento de penalização criminal de membros do
Ministério Público e magistrados. A manifestação de procuradores ou
juízes em qualquer meio de comunicação, por exemplo, seria crime. Agir
com motivação político-partidária, algo subjetivo e de difícil
comprovação, também seria criminalizado. Sob
tal ameaça, procuradores da Lava Jato deram uma entrevista coletiva
nesta quarta-feira em que propuseram uma renuncia coletiva à Operação caso a proposta seja sancionada como está por Temer.
Para
Marcelo Semer, ex-presidente da Associação Juízes para a Democracia –
que se pronunciou publicamente contra os efeitos das “dez medidas” – a
“criminalização genérica” que o texto aprovado pela Câmara propõe com os
“crimes de abuso de autoridade” é palco para arbitrariedades. “É
importante dizer que eu só estou dando essa entrevista para você porque
essa lei ainda não foi sancionada”, diz Semer. Contudo, ele aponta que o
começo do problema esteve no modo como as “dez medidas” foram
encaminhadas para discussão na Câmara. “Quiseram fazer com marketing e
sem discussão, acharam que dava para fazer mudança de lei por hashtag e
receberam um monstrengo como resposta”, argumenta.
“Esse
processo inteiro foi muito doloroso. Quem defendeu as 'dez medidas' não
ouviu o argumento de gente como os defensores públicos, que diziam que a
aprovação delas iriam ter um impacto na vida dos mais pobres. A coisa
foi passando e agora virou uma briga de corporações”, diz o defensor
Queiroz. Para ele, no cerne dos pacotes estava uma mentalidade
punitivista, algo que só poderia gerar ainda mais conflitos. “Agora,
depois da Câmara devolver esse projeto totalmente desfigurado, as
instituições vão se fechar ainda mais e não haverá espaço para
consensos. Algo que era imprescindível desde o início”, argumenta.
DESACORDOS E PRÓXIMOS PASSOS
A
discussão que se perdeu é como as “dez medidas” chegaram até onde
chegaram. Para seus críticos, elas não atacam o problema estrutural que,
todos concordam, o Código Penal brasileiro tem. Para o diretor do
Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Cristiano Avila
Marrona, o pacote atropelou os trabalhos da Comissão do Novo Código
Processo Penal que já vem sendo discutida na Câmara dos Deputados há
anos. “É consenso que o código precisa ser reformado, mas essa reforma
não pode acontecer por meio de um pacote de medidas que não olham para o
todo”, diz Marrona.
“É
uma realidade infeliz que o Brasil não consegue fazer as reformas com
rapidez. Claro que o ideal é algo estrutural, que não deixaria arestas,
mas essa comissão é a prova de que por aqui as coisas são muito lentas e
a sociedade quer uma resposta agora para a corrupção”, disse a
procuradora Batini dias antes de a Câmara aprovar o frankenstein. Segundo ela, as “dez medidas” buscavam tornar processos mais justos e um país menos desigual.
“Quem tem dinheiro vai colocando recursos atrás de recursos no processo
até se safar da prisão e quem não tem, que é a população pobre do país,
vai presa”, argumenta. Para quem sempre se posicionou contrário às “dez
medidas” essa conta não fechava: a solução para os problemas não
deveria partir de mais penalização.
Segundo
Hartmann, o que faltou desde o começo foi mais pesquisa, com dados
empíricos, para embasar as argumentações. Coordenador do projeto Supremo
em Número da FGV-RJ, ele é responsável por uma pesquisa que mostrou que
de 106 mil processos criminais, entre 1988 e 2016, apenas 2% continham
algum embargo que poderia ter servido para postergar um processo. O dado
é importante porque enfraquece a argumentação de que os embargos são um
entrave para o sistema e uma fonte de impunidade, algo que fundamentava
a argumentação de procuradores favoráveis às “dez medidas”. “Mas é
importante dizer que esses 2% podem se tratar quase exclusivamente de
casos de corrupção, o que, na verdade, fortaleceria a ideia defendida no
pacote”, diz Hartmann. Esse dado, contudo, nunca entrou na discussão.
Agora,
o que foi proposto ficou soterrado no barulho da decisão da Câmara e a
situação é tal que neste momento quase todos concordam que o que foi
aprovado não pode ter continuidade no Senado. Para Semer, o que ele vê
como açodamento do MPF para passar as “dez medidas” não pode justificar o
erro da Câmara de desfigurar o projeto e votar algo a partir de seus
próprios interesses. “O melhor nesse momento é que o Senado rejeite tudo e que a discussão comece de novo”, diz.
CÂMARA COLOCOU O PAÍS EM MARCHA À RÉ
Para o procurador-geral da República, Rodrigo Janot
“O que havia de melhor no projeto foi excluído, e medidas claramente
retaliatórias foram incluídas”, afirmou, acrescentando que uma das
mudanças realizadas “objetiva intimidar e enfraquecer Ministério Público
e Judiciário”, em referência à emenda de deputados que prevê
possibilidade de punição por abuso de autoridade para promotores e
juízes.
Por Edmilson Moura
Fonte: El Pais e Com informações do Congresso em Foco
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